Aromas de Março

Casamento infantil: uma violação dos direitos humanos

Confira o artigo deste mês da Coluna Aromas de Março sobre a violência e naturalização dessa prática no Brasil e algumas propostas para o enfrentamento a essa realidade nas comunidades rurais

Foto: Divulgação

Por Marcia Mara Ramos*
Da Página do MST

Um caso do nosso dia a dia
“Meu marido não deixa”

Desfile da Beleza Negra no sétimo ano da escola Roseli Nunes, atividade realizada todos os anos na Semana da Consciência Negra. Meninas e meninos estão eufóricos, experimentando roupas coloridas, trançando cabelos.

Dandara acode aos colegas aqui e ali, ajeita uma roupa num, coloca uma flor no cabelo de outra, mas ela mesma continua metida no uniforme da escola. Todos prontos, ela enfileira a turma, e a contempla, orgulhosa de seu trabalho. Kauã olha para ela e pergunta:

— Se arruma, que já vai começar!

— Não vou, Kauã. Meu marido não deixa, mas fico feliz de ajudar.

Dandara, menina negra, tem 13 anos. Uma barriga começa a despontar… será mãe antes dos 14, de outra menina negra.

(Microcontos para o trabalho de base sobre as Violências de Gênero, por Lizandra Guedes, Setor de Gênero do MST.)

O tema que te convidamos a refletir – a aceitação social e a naturalização do casamento infantil (ou de adolescentes) em nossos assentamentos e acampamentos, assim como em toda a sociedade brasileira – é um problema cotidiano, que materializa um conjunto de violências, aprofundadas pelo sistema capitalista e, no último período, fortalecidas por uma onda ultraconservadora. Essa tendência política reafirma um ideal de sociedade marcado pelo racismo, pelo patriarcado, pelo machismo e pela LGBTI+fobia, produtora de desigualdade e de extrema violência, principalmente contra crianças, adolescentes, mulheres, negros, indígenas, camponeses e pessoas LGBTI+.

Nos marcos legais, o direito à infância, garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é fator fundamental para a formação integral dos seres humanos e da sociedade como um todo, na medida em que, ao considerar a criança como um sujeito de direitos, possibilita que ela atue no mundo e participar da construção do projeto de país. E o que não é o casamento infantil senão uma violação cabal dos direitos humanos, pois retira das meninas justamente o direito à infância e põe em risco um conjunto de outros direitos fundamentais como a educação, a saúde e o bem-estar?

O Brasil atualmente ocupa a sexta posição em um ranking mundial do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2021), entre os países com maior número de casamentos infantis de meninas e adolescentes, antes dos 18 anos, ficando atrás apenas da Índia, Bangladesh, China, Indonésia e Nigéria.

Considerando a realidade brasileira e o debate sobre as relações humanas construídas no Movimento Sem Terra, como estão as crianças e adolescentes em nossos territórios camponeses? O casamento infantil existe em nossos territórios ou podemos considerá-los livres dessa forma de violência? Como estamos debatendo este tema, em quais espaços? As crianças e adolescentes estão sendo protegidas, cuidadas e educadas para desenvolver seu potencial humano, sem que sejam submetidas a violências? Que ações efetivas estamos buscando para resolver este problema tão importante, que afeta a vida de diversas crianças e adolescentes de nossas comunidades rurais?

Em reflexões recentes, o MST (2024, p. 10) apresentou três tipos de violências que afetam mais direta e frequentemente as meninas nos territórios camponeses. O primeiro tipo se refere à violência física, que evolui para agressões familiares. O segundo tipo é a violência sexual, que ocorre, muitas vezes, através de familiares mais próximos, não raro ocasionando casamentos ou maternidade compulsórios e o terceiro tipo de violência é, justamente, o casamento infantil.

De acordo com a “Convenção sobre os direitos da criança”, assinada pelo Brasil, a definição internacional de casamento infantil é qualquer união formal ou informal antes dos 18 anos de idade. Um estudo do UNICEF (2021) aponta que “o casamento infantil e as uniões precoces continuam sendo um dos desafios marcantes na América Latina e no Caribe, sendo a única região do mundo onde as taxas de casamento infantil não diminuíram nos últimos 25 anos”. Este estudo constatou que uma em cada quatro meninas e adolescentes é casada ou está em união estável, e a porcentagem mais expressiva dessa população está na área rural, principalmente entre as comunidades indígenas, situação que é agravada pelo aumento da pobreza e das desigualdades sociais e foi aprofundada com a Covid-19 na região.

O casamento infantil no Brasil é uma prática persistente que afeta significativamente a vida de meninas e adolescentes, sendo considerado uma violação dos direitos humanos, mas que aparenta ar despercebida em nossas comunidades rurais, pois é uma violência que foi naturalizada. Muitas vezes ele é tido, inclusive, como solução para casos de violência sexual, em que meninas e adolescentes am a ser obrigadas a conviver com seus agressores, como uma forma social de “resolver” a questão.”

Numa lógica da cultura da família tradicional, que tenta manter uma certa reputação diante da sociedade, historicamente adota-se uma postura conservadora em que se tenta impedir “escândalos”, sem considerar os direitos dessas meninas e adolescentes de viver em segurança tendo garantido seu pleno desenvolvimento social, psíquico e humano. Ao contrário, frequentemente elas são culpabilizadas pelas violências sexuais a que são submetidas, pela gravidez, pelo abandono dos estudos e tudo o mais que as impediu de viver plenamente sua infância, adolescência e juventude, o que impactarão sua vida adulta.

Os dados são assustadores quando observamos os números das violências vividas por meninas e adolescentes brasileiras. Segundo o Girls not Brides, o casamento infantil é uma questão global, “alimentada pela desigualdade de gênero, pobreza, normas sociais e insegurança”, com um quadro que representa 2,2 milhões de meninas menores de idade, casadas ou vivendo em união estável, o equivalente a aproximadamente 36% da população feminina do país abaixo dos 18 anos.

Segundo a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), ocorreram mais de 2 mil matrimônios envolvendo menores no Brasil, em 2023. Isso demonstra que essa é uma prática ainda comum em nossa sociedade brasileira.”

Os dados oficiais não revelam a realidade das meninas e adolescentes em nossos territórios rurais, mas, certamente, muitos depoimentos reafirmam os diferentes níveis de violências enfrentados por crianças e adolescentes do campo, das águas e das florestas, quando o debate é aberto para as mulheres das comunidades.

No Brasil, a prática do casamento é permitida pela Lei 13.811, que define a idade mínima legal para o casamento a partir dos 16 anos, desde que haja consentimento da família responsável. Mas quantas meninas vivem com homens mais velhos, e se tornam mães a partir dos 11 anos de idade em nossos territórios?

Que reflexões podemos fazer diante dessa realidade nacional? Como estamos nos posicionando em relação às violências cometidas que chegam até nós através de denúncias formais ou informais? Ou mesmo na escola, na comunidade, como agimos diante da famílias de tantas meninas e adolescentes que “aparecem” casadas em nossos territórios? Como devemos agir, enfrentar, denunciar, provocar o debate e fazer uma luta coletiva que problematize o casamento infantil e outras violências?

Sabemos, através de diferentes estudos que tratam do tema, que o casamento infantil está vinculado a um conjunto de fatores sociais como à pobreza e à extrema pobreza, às desigualdades sociais e ao patriarcado, levando à gravidez precoce, à evasão escolar e à exposição precoce às violências de gênero. Temos uma dívida histórica com as meninas e mulheres da classe trabalhadora, principalmente meninas e mulheres negras, sendo urgente e necessário não fecharmos mais nossos olhos para esta situação. 

Nosso Projeto de Reforma Agrária Popular não se constrói com violências e sim pela prática cotidiana do cuidado. Por isso, é importante fortalecer o envolvimento de familiares, da comunidade, das forças vivas dos territórios, como as igrejas, as escolas, as associações e a própria militância do MST na promoção da igualdade de gênero, no enfrentamento às violências e na prevenção do casamento infantil. É preciso cuidar e formar crianças e adolescentes por meio de ferramentas educativas, estudar e desenvolver campanhas de conscientização que envolvam toda a comunidade, mas também é preciso ter firmeza para, quando necessário, buscar o aos instrumentos legais. 

É importante destacar que o artigo 217-A do Código Penal brasileiro trata por crime de estupro de vulnerável toda prática sexual com menor de 14 anos, mesmo que consentida pela vítima. Porém, temos muito o que fazer para prevenir atos como estes.

Como proposição, destacamos para mais informações:

1) Buscar ações concretas vinculadas às redes de proteção e às políticas públicas para a infância contra o abuso e a exploração sexual, bem como o casamento infantil;

2) Organizar e mobilizar ações para a igualdade de gênero desde a infância, por meio de processos participativos envolvendo campanhas contra o racismo, o machismo, a violência e a exploração feminina, promovendo projetos voltados à saúde e à conscientização de jovens sobre sexualidade e direitos reprodutivos;

3) Apoiar-se nas políticas públicas e marcos legais que foram conquistas históricas referente a essas violências:

a) Na legislação: a Lei nº 13.811/2019 proíbe o casamento de menores de 16 anos, em qualquer circunstância no Brasil. No entanto, adolescentes entre 16 e 18 anos ainda podem se casar com consentimento dos pais ou responsáveis, o que mantém brechas legais para a continuidade da prática. Disponível em: L13811.

b) O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): resultado de uma luta histórica brasileira que garante a proteção integral de crianças e adolescentes, além de prevenir práticas que comprometam seu desenvolvimento, como o casamento precoce. Disponível em: O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA — Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.

c) Os Planos Nacionais referentes aos direitos das crianças e adolescentes: embora não haja um plano nacional específico em relação ao enfrentamento ao casamento infantil, diversas políticas públicas de educação, saúde e assistência social contribuem indiretamente para a prevenção do casamento infantil. Disponível em: Governo Federal – Participa + Brasil – Planos Nacionais Relacionados aos Direitos das Crianças e Adolescentes

d) A campanha“Criança não é mãe”: chama a atenção para a questão sensível e complexa de que “Maternidade não e coisa de criança” e de que as crianças precisam de proteção, cuidado e educação. Disponível em: (https://www.criancanaoemae.org.br). e e se informe!

Para encerrar este nosso bate-papo, reafirmamos como mulheres e homens Sem Terra, o compromisso com posicionamentos e ações referentes à dívida histórica com meninas e mulheres de nosso país, e a necessidade de denunciar e enfrentar todos os tipos de violências, incentivando crianças e adolescentes a estarem em movimento, no campo do ativismo e do movimento infantojuvenil.

* Doutora em Educação, pesquisadora dos estudos da infância e de políticas públicas para mulheres rurais e crianças do campo, militante e educadora popular do MST. 

**Editado por Fernanda Alcântara e Solange Engelmann