Débora Nunes relata o cenário político para o campesinato brasileiro

“O desafio que se coloca é justamente articular as diversas resistências num processo único, numa articulação e ação global que possa enfrentar o capitalismo”.

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Fotos: Gustavo Marinho 

 

Por Rafael Soriano 
Da Página do MST

O Brasil enfrenta mudanças políticas desde a crise que resultou na saída de Dilma Roussef da presidência. Alguns setores da sociedade, contudo, sofrem medidas específicas no corte de direitos e nas violações de direitos humanos. Neste contexto, o MST sustenta a luta por uma Reforma Agrária Popular, que construa soberania alimentar para famílias que vivem no campo e na cidade.

Débora Nunes, da Direção Nacional do MST, dialoga conosco sobre o atual cenário de luta pela terra no mundo, mas vai além: remete à necessidade de fortalecimento de articulações como as do Papa Francisco e a própria Via Campesina, como alternativas viáveis de mobilização contra o capitalismo.

É um informe atualizado sobre o contexto político que a os camponeses no maior país da América Latina, tendo em perspectiva as bruscas mudanças trazidas por um golpe de Estado em 2016. As lutas massivas acontecem denunciando a Reforma Trabalhista e da Previdência, mas Débora reflete: “temos grandes desafios para enfrentarmos o golpe e suas consequências, precisamos comunicar melhor e organizar as massas.”
Confira a íntegra.

Qual a condição de luta pelo o à terra e contra a concentração fundiária no Brasil após o Golpe de 2016?

A questão do o à terra no Brasil é secular e até o presente momento não solucionada, contudo ela tem se aprofundado em suas contradições e consequências danosas, em relação a camponeses e camponesas Sem Terra, povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e a toda a sociedade, ganhando traços mais violentos a partir do acirramento da luta de classes. É o que vivemos atualmente no Brasil após o golpe jurídico, parlamentar, industrial e midiático de 2016.

Após o golpe a burguesia agrária brasileira e o agronegócio ganham muito mais força no governo golpista e ilegítimo de Michel Temer, e assim como em outros setores vão avançando na viabilização de um projeto ainda mais conservador e violento para o campo Brasileiro, sobretudo através da ação da bancada ruralista, retirando direitos, inviabilizando o o a terra e tirando vidas.

Essa ofensiva acontece em diferentes frentes. No final de 2016, o governo mandou para o congresso nacional, a Medida Provisória 759 que trata da regularização fundiária e urbana. Inclusive a mesma foi sancionada no ultimo dia 11 de julho, e agora é lei. As principais consequências são a reconcentração e mercantilização de terras públicas. Com o processo de titulação imposta pelo governo, terras da reforma agrária que hoje estão com os trabalhadores e trabalhadoras podem ser reconcentradas e voltar para as mãos do latifúndio e agronegócio.

Além de reconcentrar a terra, a nova lei isenta o Estado de sua responsabilidade, uma vez que, tituladas as famílias, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não mais tem responsabilidade de garantir políticas de permanência destas famílias com condições dignas. Nessa frente outras ações também são reforçadas como a ofensiva sobre territórios quilombolas e indígenas, flexibilizando a legislação e impedindo o seu reconhecimento.

Outra ação que acontece é o não assentamento de novas famílias, com a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário e o sucateamento e inviabilização do Incra. Há um grande aumento da violência contra a vida de quem luta e resiste no campo. Só em 2017 já são 38 assassinatos no campo brasileiro.

O modelo do agronegócio sai fortalecido do Golpe? Em que sentido?

Muito fortalecido. Pois neste momento a bancada ruralista tem garantido  no congresso nacional a aprovação de leis que favorecem as condições necessárias para o avanço e fortalecimento do agronegócio, que vai desde a retirada de direitos dos camponeses/as, quilombolas, povos tradicionais, etc, até a liberação irrestrita de apropriação das terras, inclusive por estrangeiros, e a apropriação dos bens da natureza. Então tudo o que ainda existe de limite à ação irresponsável e irrestrita do capital na agricultura está sendo flexibilizado. Há também um desmonte total do que ainda restava de politicas voltadas para a pequena agricultura.

Os casos de violência no campo têm aumentado. Existe uma relação direta com a conjuntura política?

É alarmante o aumento da violência no campo no ultimo período, em suas diversas formas. Sem dúvida, tem relação direta com a conjuntura politica, pois ao mesmo tempo que avançam na retirada das conquistas através da ação da bancada ruralista no congresso, o que impede o fortalecimento da classe trabalhadora camponesa, também agem na ação direta da violência, uma vez que se permite tacitamente que as questões e conflitos fundiários sejam resolvidos aos moldes do que historicamente se fez no Brasil – na truculência e na base da violência, seja do Estado com seu aparato policial indo a campo matar e forjando conflitos que só matam de um lado, o lado dos/as trabalhadores/as, seja através da milícia armada, da pistolagem e das empresas particulares de segurança, que se valem da impunidade para fazerem justiça com as próprias mãos: despejam, mutilam, torturam e matam. Só este ano já foram assassinados 38 pessoas no campo, com massacres como é o caso de Conilza, Mato Grosso e Pau Darco no Pará.

Como o MST e os demais movimentos sociais tem enfrentado esta conjuntura de retrocessos nos direitos da classe trabalhadora, que atingem com violência o campesinato?

Primeiro, na consciência de que vivemos um golpe articulado por setores conservadores da elite brasileira, judiciário, ministério publico federal, congresso federal, a grande mídia e o imperialismo, ter essa compreensão é fundamental para podermos enfrentar a situação. Isso nos possibilita entender que os nossos inimigos são grandes e estão muito bem articulados, logo só é possível enfrenta-los com um amplo processo de unidade da classe trabalhadora e de setores progressistas da nossa sociedade. Por isso que temos gasto energia e de maneira generosa contribuído para o fortalecimento de instrumentos que apontem nesta direção, a exemplo da Frente Brasil Popular, uma frente ampla que tem sido construída com centenas de organizações, não apenas para termos unidade de leitura e reflexão, mas sobretudo de ação, de construção e realização de lutas conjuntas.

Mas ainda temos grandes desafios para enfrentarmos o golpe e suas consequências, precisamos comunicar melhor e organizar as massas. A formação politica também é condição para que todos compreendam o que esta em jogo e enfrentem essa classe dominante que saqueia nosso país e massacra o nosso povo há 2017 anos.

Qual a movimentação do Golpe? Como o movimento interpreta este cenário?

Não há necessariamente um golpe dentro do golpe, mas etapas de um mesmo golpe que tem objetivos bem definidos e que está aproveitando o momento para realizar todas as reformas necessárias para viabilizar o capital financeiro, às custas da retirada de direitos dos/as trabalhadores/as. Assim para os interesses do golpe trocar o presidente golpista Temer pelo presidente da Câmara Maia, é como trocar 6 por meia dúzia.

Não importa quem está na “condução”, mas que aquilo que foi traçado seja garantido, as reformas trabalhista e da previdência, redução do custo trabalho, precarização, liberação de terras para estrangeiros, retrocessos sociais etc.

A grande questão que já se observa é que há um desgaste com a figura do Michel Temer, pela impopularidade, pelas denuncias de corrupção. Enfim, esses fatores que envolvem a figura do presidente ilegítimo não podem, para seus articulistas, colocar em risco o curso do Golpe. Então a proposta é trocar e garantir todas as reformas contra o povo.

Que alianças tem sido construídas em nível global na luta contra o sistema capitalista e quais os próximos os dessa luta? Conseguimos enxergar experiências práticas de alternativa ao sistema?

Assim como temos nos esforçado a nível de Brasil em construir alianças para enfrentar de forma unitária e solidária este momento difícil que atravessamos na conjuntura política, através de frentes de luta, estamos em sintonia com outras movimentações de unidade ao redor do globo. Enxergamos em primeiro plano a Via Campesina, como uma grande aliança intercontinental de povos camponeses contra os avanços do capitalismo na agricultura e nos campos, águas e florestas. Outra forte iniciativa recente que merece nossa atenção é a articulação que surge em torno do posicionamento em favor dos pobres sustentada pelo papado de Francisco II, que promove o Encontro Mundial de Movimentos Populares.

O grande o que precisa ser dado é esse, a construção de lutas massivas unitárias a nível global e que consigam realmente se opor e dar respostas às ações de devastação estabelecida de forma cruel pelo sitema capitalista em todo o mundo, não só na apropriação da natureza mas na retirada de direitos e destruição da soberania dos povos. Conseguimos enxergar experiências pontuais que dão o exemplo, a resistência do povo de Cuba, a luta em toda América Latina e no mundo. Apesar de estas experiências acontecerem hoje desarticuladas, o desafio que se coloca é justamente articular as diversas resistências num processo único, numa articulação e ação global que possa enfrentar o capitalismo.

 

*Editado por Maura Silva