Projeto de Lei sobre biodiversidade fere tratado internacional, diz seu dirigente
De acordo com Bráulio Dias, da Convenção da Diversidade Biológica, aprovação do PL pode trazer consequências negativas e restringir direitos de povos indígenas e tradicionais.
Por Oswaldo Braga de Souza
Do Instituto Socioambiental
O Congresso deverá decidir, em breve, parte do destino daquela que pode ser a riqueza mais estratégica do País: tramita no Senado o Projeto de Lei (PLC) nº 2/2015 (antigo PL 7.735/2014 da Câmara), sobre os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e agrobiodiversidade (saiba mais no box no final do texto). O projeto pretende substituir a Medida Provisória 2.186-16/2001, que regula o tema no Brasil hoje. Se for alterado, o PLC retorna à Câmara. Caso contrário, segue para sanção presidencial.
O projeto é alvo de polêmica e vem sendo criticado duramente por povos indígenas e tradicionais, como quilombolas e ribeirinhos, por restringir seus direitos. O governo excluiu-os da discussão e elaborou uma proposta em conjunto com ruralistas e o lobby da indústria de cosméticos, remédios e higiene (leia manifesto de povos indígenas e tradicionais contra o governo e empresas).
Na entrevista a seguir, o secretário executivo da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), o brasileiro Bráulio Dias, afirma que dispositivos do projeto, segundo o texto aprovado na Câmara, ferem a CDB e o Protocolo de Nagoya. Segundo Dias, a aprovação do PL pode dificultar a ratificação do protocolo pelo Brasil, com implicações negativas para o país.
Assinada em 1992, na Rio 92, a CDB é um dos mais importantes tratados internacionais sobre meio ambiente. Vigente desde outubro de 2014, o protocolo foi assinado no âmbito da convenção e pretende viabilizar seu terceiro objetivo: proteger os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
Eis a entrevista
O Art. 47 do PLC nº 2/2015, como veio da Câmara, afirma que “a utilização de patrimônio genético e de conhecimento tradicional associado de espécie introduzida no País pela ação humana até a data de entrada em vigor desta Lei e encontrada no território nacional, na plataforma continental ou zona econômica exclusiva não estará sujeita a repartição de benefícios prevista em acordos internacionais sobre o e repartição de benefícios dos quais o Brasil seja parte, ressalvada aquela prevista no Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para a Alimentação e a Agricultura, promulgado pelo Decreto nº 6.476, de 5 de junho de 2008”. Este artigo fere a CDB?
Eu entendo que sim. Não temos um parecer jurídico formal sobre isso. Se necessário, poderemos fazê-lo. Aparentemente, o artigo, como está redigido, contradiz o que está previsto na convenção e o ato feito pelo próprio Congresso, de 1994, ao ratificar a CDB. O Brasil só pode ratificar ou não uma convenção internacional. Ele não pode alterar unilateralmente o entendimento de um acordo internacional.
Podemos dizer que o projeto contraria também o Protocolo de Nagoya?
Ele fere também o Protocolo de Nagoya. Mas poderá se argumentar que o Brasil ainda não ratificou o protocolo. Mas se o Brasil intenciona ratificar, e eu espero que isso venha a ser feito, essa lei, se mantida dessa forma, estará confrontando o previsto no protocolo.
A aprovação do projeto é um obstáculo à ratificação do protocolo? Quais as consequências de uma não ratificação?
Poderá ser [um obstáculo]. Agora, é importante chamar a atenção dos que forem ler esta entrevista que esse artigo fere direitos internacionais, portanto poderá prejudicar os direitos de outros países, de povos e comunidades indígenas e tradicionais de outros países que sejam os originários de recursos genéticos que venham a ser usados pelo Brasil. O que esse artigo diz é que o que já foi introduzido no Brasil, anteriormente à entrada em vigência dessa lei, estará isento de repartição de benefícios. E, portanto, isso estará ferindo esse direito que já foi estabelecido pelaCDB.
Outro aspecto a ser destacado é que isso também vai prejudicar os interesses nacionais do Brasil quando o país quiser solicitar o aos recursos genéticos de outros países para atender suas necessidades. Por exemplo, no setor agrícola, se ocorrer uma nova doença, uma nova praga, ou uma mudança climática, se o Brasil, para desenvolver novas variedades de cultivares ou novas raças de animais para enfrentar essas dificuldades, vier a necessitar de recursos genéticos de outro país, muito possivelmente esse outro país não vai dar o ao Brasil em vista dessa disposição do artigo 47.
Como o Brasil já tem uma legislação nacional, os outros países que quiserem ar os recursos e conhecimentos nacionais terão de cumprir a lei brasileira. Evidente que apenas ter uma lei nacional não é suficiente para evitar a biopirataria. Se alguém retira um recurso genético ou conhecimento tradicional do Brasil sem autorização, a lei nacional não abarca mais esse material porque ele estaria fora do país. Por isso é importante a adesão do Brasil ao marco legal internacional para assegurar os seus direitos. O protocolo tem regras de cumprimento. Se empresas ou pesquisadores vierem a extrair algum material do Brasil sem a devida autorização e sem pagar a repartição de benefícios, o Brasil poderá recorrer a esses mecanismos previstos no protocolo para sustar esses usos e obter uma indenização.
O projeto estabelece uma série de isenções para a repartição de benefícios. Essas isenções ferem o protocolo e a CDB?
Quando se tratar de recursos genéticos ou conhecimentos associados de origem externa ao Brasil, sim, estará ferindo os direitos internacionais.
O Brasil, como qualquer outro país, tem condição de definir regras próprias internas. Pode estabelecer algum regime facilitado para os casos de o aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais dentro do país, originários do próprio país. Ao mesmo tempo, a CDB e o protocolo são muito claros sobre a necessidade de se respeitar os direitos dos povos indígenas e comunidades locais detentores de conhecimentos tradicionais relevantes ao uso e conservação da biodiversidade. Isso também está na Convenção 169 [da Organização Internacional do Trabalho].
Esse é outro aspecto que o Congresso tem de atentar bastante para ver se o texto final aprovado respeita esses princípios que estão no marco legal internacional. Se forem isenções previstas para recursos genéticos e conhecimentos tradicionais internos, isso exige uma análise mais detalhada. No caso dos recursos genéticos, depende da natureza jurídica da titularidade dos recursos. No caso de conhecimentos tradicionais, é muito claro no direito internacional e no direito nacional que os detentores desses conhecimentos são os povos indígenas e comunidades locais. O Estado não detém o direito sobre esses conhecimentos. Se alguém pode falar em isenção de repartição de benefícios, são os detentores desses direitos.
O próprio governo brasileiro ite que de povos indígenas e tradicionais não foram consultados adequadamente na formulação do projeto. Além disso, o texto em tramitação relativiza o conceito de “consentimento livre, prévio e informado” (saiba mais no box no final do texto). Isso também contraria a CDB e o protocolo?
Sem dúvida. Esse é um dos pilares das regras estabelecidas pela CDB e o protocolo.
Podemos dizer, então, que tanto o processo para formulação do projeto quanto os termos colocados em seu texto para definir o consentimento prévio contradizem a CDB?
Não vou comentar com relação aos procedimentos adotados pelo Brasil porque não tenho informação suficiente sobre todas as consultas que foram feitas ou não. É uma questão interna do país. A CDB diz que os países que ratificaram a convenção assumiram o compromisso de respeitar os direitos dos povos indígenas e comunidades locais referentes à sua biodiversidade, recursos genéticos e conhecimentos tradicionais. Essa é uma regra básica da convenção e do protocolo. Se detalhes do que está previsto na lei ferem esses direitos, isso exige uma análise bastante cuidadosa. Uma análise preliminar de minha parte é que, aparentemente, certas isenções previstas podem estar, sim, ferindo direitos de povos indígenas e comunidades locais no Brasil.
Saiba mais
O que são os recursos genéticos da biodiversidade e da agrobiodiversidade?
Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos.
Tanto os recursos genéticos quanto esses conhecimentos servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e de higiene. Por isso, podem valer bilhões em investimentos. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.
O que é a “repartição de benefícios” prevista na CDB?
A CDB prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.
O que é o “consentimento livre, prévio e informado”?
“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e agrobiodiversidade – os povos indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo-se-lhe tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.